terça-feira, 1 de outubro de 2013

Os sapatos vermelhos da senhora

Eram vermelhos e brilhantes, os sapatos vermelhos da senhora.

Eram calçados de manhã cedo, ainda o sol não havia aquecido a vidraça das janelas. Roçavam todo o dia umas meias de vidro estreadas de propósito por ser um dia importante. Ficavam a condizer com a saia e o blazer cinzentos e com a camisa de leves riscas vermelhas que vestiam esta boa senhora.

Passavam o dia de um lado para o outro. Ora faziam barulho no soalho do escritório, ora andavam devagarinho para não escorregarem na calçada, ora descansavam ainda cruzados junto à secretária. Uma azáfama tremenda. Mas eles não sossegavam. Ora era para a esquerda, ora era para a direita. Ora era a dar uma corrida para apanhar o metro que estava quase com as portas a fecharem-se ora era a esticarem-se para a senhora conseguir alcançar o dossiê que estava na prateleira mais alta.

As solas sofridas por mais um dia de trabalho só encontravam descanso há hora do almoço quando pisavam a relva macia do jardim da cidade. Aí recuperavam as forças. Por vezes, tinham o azar de o seu vermelho luzidio ficar tingido de castanho com cheiro a café. Mas logo eram acariciados por um pano húmido como alguém que trata com muito cuidado uma ferida num joelho de uma criança. Os sapatos sabiam que o mundo não iria acabar só por causa disso. São ossos do ofício! - diriam outros sapatos de outras cores também brilhantes.

Já perto do fim do dia de trabalho, sofriam às vezes alguns percalços, ficando a agulha presa entre duas pedras da calçada, num buraco de uma grelha do esgoto ou pisando algo desagradável e mal cheiroso. Às vezes, acontecia a cunha saltar por acidente e os sapatos eram colocados num saco que era entregue a um senhor de mãos pouco limpas. Eles não gostavam muito da forma como eram tratados por este senhor. Por vezes, aquelas mãos eram brutas e sujavam-nos de graxa. Graxa essa que havia sido usada numas botas rudes de homem que trabalhava com elas todos os dias solo a solo (e até mesmo sola a sola). Verdade é que, os sapatos acabavam por ficar consertados e prontos rapidamente para voltar a acompanhar a senhora na sua rotina quotidiana.

Geralmente, depois da última caminhada ao final da tarde, apanhavam finalmente o elevador e pisavam a alcatifa do hall de entrada da casa da senhora. Era sempre a mesma alcatifa bege e bem-disposta que lhes dava as boas-vindas. Mas, os desgraçados rapidamente eram descalçados e atirados para um canto da casa aos trambolhões, como se a senhora se tivesse esquecido de todo o trabalho e esforço que eles tinham tido durante o dia para a acompanhar.

Os sapatos vermelhos e brilhantes da senhora sentiam-se injustiçados. Era de facto uma falta de gratidão para com quem vivia inteiramente para agradar à senhora. E como se isto não bastasse, no final do dia a senhora tirava-os não para andar descalça (o que até seria compreensível) mas para os trocar por umas pantufas simplórias. Aquelas cobertas de pelo que um dia já tinha sido branco e com dois buracos. Os sapatos vermelhos e brilhantes ficavam sempre lá no seu canto a fitar o que a sua senhora fazia com as reles pantufas. Viam-nas a acompanha-la na cozinha de um lado para o outro: do frigorífico para a bancada, da bancada para o fogão, do fogão novamente para o frigorífico e para a bancada outra vez. Às vezes, eram apanhadas de surpresa por uns salpicos de água ou por um tropeção no tapete junto ao lavatório. E aí é que os sapatos da senhora se regozijavam. Riam-se bem alto e as suas cores até parecia que ficavam mais brilhantes pelo gosto que tinham em ver as malditas pantufas a atrapalharem-se entre elas e a ficarem ainda mais sujas. Depois, viam a senhora a andar de um quarto para o outro. Ouviam-na a murmurar, a falar e por vezes a cantar.

Os sapatos vermelhos e brilhantes da senhora sentiam-se tristes e quase amaldiçoados. Eles só perdoavam a senhora porque ela os trocava por uma boa razão. Eram as únicas horas do dia que a senhora tinha para cuidar dos chinelos pequeninos.

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