terça-feira, 22 de outubro de 2013

Sombra

Ela vive num canto de um beco sem saída. As suas formas são bem delineadas mas apenas visíveis à luz do candeeiro da rua. E é à noite que ela mais gosta de estar. Ela é escura, nem preta nem negra. Simplesmente, escura. Ninguém dá pela sua presença. Nem ela muitas vezes dá pela sua própria existência. Ela foge quase de tudo o que a rodeia e anda sempre escondida de todos.

Ela é fria mesmo no dia mais quente do ano. No inverno é gélida ao ponto de fazer arrepiar o ser mais corajoso. Muitos têm medo dela. E muitos têm medo dela mesmo sem nunca a ter conhecido. Ela não acha isso justo. Dizerem que ela é apenas um pedaço de escuridão, um sítio que nem o sol quer iluminar. Dizerem que ela quer mal às crianças e que as assusta mesmo nos seus quartos durante a noite. Afirmarem até, sem nunca a terem visto, nem sequer dirigido a palavra, que ela ajuda o Bicho-papão a assustar os pequenos que não comeram a sopa toda ao jantar. Uma panóplia de mentiras, umas atrás das outras, que ela ouve no beco onde vive.

Às vezes, as crianças do bairro lá lhe atiram uma bola mas como ela não consegue chutar de volta, acaba por ir sempre lá sozinho, um dos rapazes. Mal agarra a bola desata numa correria desenfreada como que a fugir dela. A Sombra fica triste. Gostava de ter mais amigos. Os únicos com quem ela pode contar são os gatos. Os gatos pretos, claro. À noite, depois de os gatos terem vasculhado todos os caixotes do lixo de todos os restaurantes da cidade vão ao beco e ficam deitados num pequeno muro que lá há. Passam a noite a conversar, a Sombra e os gatos pretos. Na verdade as suas conversas acabam sempre por ir parar aos mesmos assuntos. Falam sobre a noite que parece sempre tão curta e sobre o dia que demora imenso a passar. A Sombra lamenta-se sobre a falta de atenção que lhe dão, e as injúrias que sobre ela fazem, enquanto os gatos pretos falam inconformados sobre a conotação de azar que lhes atribuíram desde há muitos anos. Eles eram os melhores amigos das bruxas. E depois? Explicam à Sombra que enquanto ela está ali quieta e sossegada durante o dia, eles passam o dia todo a ver as pessoas fugirem deles a sete pés ou a irem esbaforidas à procura de algo vermelho para beijar. As pessoas pensam que isto funciona como antídoto à má sorte por se terem atravessado à sua frente. São longas as noites que passam a conversar. Mas, de manhã, os gatos lá vão às suas vidas e a Sombra ali fica novamente sozinha.

Vai-se divertindo debaixo da árvore do bairro ou saltando por entre as sombras dos carros, aproveitando a boleia de um cão que passa por perto. Num dia em que não esteja tão triste até se diverte a fazer equilibrismo nas sombras dos estendais, saltando ao pé-coxinho por entre meias, camisas e cuecas. Outras vezes entretem-se a trepar pela sombra do candeeiro de rua que se reflete no muro. Estica-se toda como se se estivesse a espreguiçar e dá uma espreitadela aos quintais que estão por trás do muro. Nunca se atreveu a sair dali. Apesar de tudo, é ali que gosta de estar.

Outras sombras há, que vivem na praia e nas esplanadas das cidades grandes. Claro que também são felizes nesses lugares mas nunca ficam tempo suficiente para se aperceberem da sorte que têm. Mal as pessoas se fartam e querem ir para casa, fecham o chapéu-de-sol e já está. Começam as nuvens a aproximar-se e o vento a soprar e lá vai alguém guardar os chapéus-de-sol na despensa, deixando as sombras enclausuradas num cubículo até ao próximo dia soalheiro.

Ela, apesar de tudo, prefere viver ali naquele beco, sem grande beleza e sem grande exaltação. Chega-lhe a certeza de que todos os dias alguém a visita, ou para ir buscar uma bola, ou para conversar um pouco sobre os azares desta vida.

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